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Entre pandemia e Netflix: uma conversa sobre cinema em tempos de crise

A conversa virtual seguiu três pontos principais como guias para discorrer acerca do tema central: a crise no cinema em tempos de pandemia, a crise legislativa na área cinematográfica e, por fim, perceber se existe uma crise interna ao próprio cinema. Antes de dar início ao debate de ideias, Abílio Hernandez chama a atenção para o filme “Bom Povo Português”, da autoria do convidado Rui Simões. “Tem havido um silêncio injusto sobre este filme”, declara, frisando que é uma obra que se deve mostrar em tempos de crise. 

 

Cinema em crise pandémica: as dificuldades de hoje e a esperança no futuro

A disseminação da Covid-19 por todo o mundo impôs drásticas mudanças nos diversos setores de atividade económica. O confinamento imposto pelo governo esvaziou as salas de cinema e impossibilitou a produção cinematográfica durante meses. 

Rui Simões organiza um festival sobre a sétima arte e é produtor, realizador e distribuidor de cinema. Começa por dizer que a mostra de cinema que organiza na produtora Real Ficção acabou momentaneamente. No que toca à produção, explica que a situação é muito grave, dado que têm “todos os encargos de ser produtores” – como “pagar rendas, estúdios, escritórios, prestações dos equipamentos”, entre outros gastos. “E um problema muito grave é não podermos filmar”, completa.

O cineasta encontra fôlego no trabalho que ainda tem em mãos, que é a nível de pós-produção e edição. “No meu caso, tenho a sorte de estar a terminar alguns filmes, o que me permite trabalhar. Mas quando isto acabar, fico no vazio”. Quanto à distribuição de filmes, considera que, ainda que tenha havido mais filmes a serem distribuídos e exibidos, agora têm menos público do que antes. “A crise do cinema passa por muitos elementos diferentes e com a pandemia agrava-se”.

Quando questionada sobre as consequências da pandemia, Raquel Rato admite que têm sido tempos muito complicados para o sistema do cinema português. “Muita gente ficou sem trabalho porque não se podia filmar”, sublinha. Apesar de não estar por dentro desse meio, confessa que também foi afetada, uma vez que o projeto que tem em mãos teve de parar, por não haver condições para realizar entrevistas. No entanto, Raquel acredita em dias melhores para o cinema. “É evidente que temos poucos espectadores nas salas portuguesas, mas por outro lado acho que foi um dos anos em que mais se estreou filmes portugueses nas salas!”.

 

“A Netflix é Hollywood em crise”

No que toca ao segundo ponto-guia do painel, Abílio Hernandez explica que a aprovação da proposta de lei sobre audiovisual (44/XIV) é muito relevante para o cinema em Portugal. Esta lei foi aprovada no dia 23 de outubro e inclui a criação de uma nova taxa para as plataformas de ‘streaming’, que ficam sujeitas ao pagamento de uma taxa anual que corresponde a 1% do montante dos proveitos relevantes desses operadores. Como descreve o moderador, “esta proposta de lei gerou fortes críticas e protestos”.

No que toca à legislação para a área do cinema, Rui Simões mostra-se desiludido e afirma que “o Ministério da Cultura dá tudo às plataformas. Ao cinema português não dá nada”. Raquel concorda. Explica que “Portugal parece um país que mendiga por migalhas e que fica contente com essas migalhas”. Fundamenta que, na sua opinião, “o Estado é que deve ser o principal autor da proteção e do financiamento do cinema português”. Na sua perspetiva, se o Estado só financia essas plataformas de ‘streaming’, alimenta mais o cinema comercial – que já tem muitos espectadores e modos de financiamento -, o que gera algum perigo para o cinema português.

Sobre a vida do cinema nos tempos que correm, o realizador Rui Simões tem a dizer que “há um fenómeno que é preciso ter em conta, que é o lado híbrido da sociedade hoje em dia”. Descreve a realidade através de uma metáfora, dizendo que hoje “quase comemos imagens”, uma vez que se vive numa sociedade voltada para o consumo visual de imagens. “Não podemos falar de cinema e de audiovisual como falávamos antes”, esclarece.

Cada vez mais as plataformas de ‘streaming’ têm surgido no seio do debate cinematográfico, por se ver migrarem para lá filmes que antes seriam passados em salas de cinema. Rui Simões dá o exemplo do mais recente filme de Alfonso Cuarón (“Roma”), que foi publicado numa plataforma de ‘streaming’: “a Netflix é Hollywood em crise. Hollywood sai das salas de cinema para ir para nossa casa”. 

O realizador de cinema defende que estas plataformas “fazem um produto cinematográfico para ‘streaming’ (que não vai passar em sala), mas a primeira coisa que fazem é mandar para Cannes para ter a marca do luxo da arte, para depois proibir o mundo inteiro de ver em sala, para [ter de] ver em ‘streaming’”. No entanto, conclui que se está a viver “um momento muito complexo” e que “as análises são muito difíceis de fazer”. O que é certo é que, nas suas palavras, “o cinema nunca deixará de ser cinema”. Raquel Rato acrescenta que “não é por ser [publicado] no digital que se vai pôr em causa se o filme é bom ou mau”.

Para fechar a conversa, Abílio Hernandez partilha que “o que está em causa é o lugar identitário do cinema, a sala de cinema! Para ver cinema temos de olhar para cima. Não é para baixo, para a televisão”. E conclui ao afirmar que “o digital permitiu uma democratização da arte de fazer cinema”, pelo que não há uma crise interna na esfera cinematográfica.

Com o relógio a bater nas 16h30, o painel foi encerrado com o desejo de todos os participantes de estarem juntos novamente – desta vez para lá do ecrã.

A primeira conversa virtual da XXVI Edição do Festival Caminhos pode ser vista aqui.

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