Por João Luís Fernandes
Clube de Cinema Caminhos · Fevereiro 2023
Um interessante diálogo entre a Geografia e a Arqueologia é a ideia dos lugares que definham e podem morrer. Habituados a estudar núcleos de povoamento que crescem, expandem-se e tornam-se sucessivamente mais complexos, é importante perceber que o sentido contrário também é possível.
Uns desaparecem em poucos dias porque se tornam repulsivos, como Pripyat (na Ucrânia) depois da explosão de um dos reatores da central nuclear de Chernobyl em 1986.
Outros vão perdendo centralidade e razão de ser. Tornam-se indifentes mas deixam marcas na paisagem, ou melhor, deixam uma paisagem de matéria, ruídos, vozes e memórias. Este foi o exemplo de Pyramiden, a cidade mineira soviética no arquipélago de Svalbard (Noruega). Porque estes lugares também falam, em 2012 uma banda dinamarquesa de rock experimental (Efterklang) recolheu, trabalhou e misturou os registos da paisagem sonora deste espaço abandonada e editou o álbum “The ghost of Piramida”.
Fordlândia, uma cidade-empresa de 1928 fundada por Henry Ford na Amazónia (nas margens do Rio Tapajós), não é propriamente um lugar-fantama mas tem uma trajetória de decadência e ruína.
O lugar nasce porque no início do século do automóvel era preciso recolher a matéria-prima (borracha) para os pneus. Por várias razões, o projeto não resultou e a cidade, sem vida para além da sua monofuncionalidade original, foi-se decompondo.
Com habitações, um hospital, piscina e outros equipamentos de apoio, esta “american town” ocupou o território de um antigo povoado indígena, foi o núcleo e a frente avançada de um processo rápido de desmatamento. Apesar disso, Fordlandia fracassou nos seus objetivos iniciais e tornou-se uma ruína, ainda que ali permaneça um número residual de habitantes que resistem.
Vem isto a propósito de uma excelente sessão temática dedicada à Amazónia que aconteceu no final da tarde de domingo, ontem dia 26 de fevereiro, na Casa do Cinema de Coimbra.
Organizado pela Caminhos do Cinema Português e com um debate orientado pela Dra Vilma Reis, mostraram-se e discutiram-se 3 filmes documentários- “Yarokamena” (de Andrés Jurado); “Abrir Monte” (Maria Rojas Arias) e “Fordlandia Malaise” (Susana de Sousa Dias). Os dois primeiros autores estiveram presentes na sala.
Apesar de diferentes nas suas análises e composições, e ainda que se tenham detetado sinais de alguma esperança, representaram-nos uma Amazónia tensa, violenta, agressiva, desigual, assimétrica e atravessada por relações de poder instáveis e estigmatizantes.
Enquanto geógrafo, tenho pugnado pelo princípio da rugosidade do espaço geográfico. Apesar da “globalização” (um termo muito usado mas mal compreendido), os lugares e os territórios permanecem diferentes. Sabemos hoje mais uns dos outros, a informação, as trocas e as interdependências aumentaram (não se discute aqui os sinais mais recentes de algum retrocesso neste domínio), mas as vivências espaciais não se diluiram num todo homogéneo e indistinto.
Também se sabe que um dos problemas da sociedade contemporânea é o adormecimento e a indiferença e que muitos lugares e experiências espaciais reforçam essa sonolência. Outros fazem o contrário. Retiram-nos da zona de conforto e entorpecimento e estimulam-nos o sentido crítico.
Está por estudar o efeito do espaço sobre o criativo, o turista ou o investigador que ali se desloca e fica por algum tempo. Tudo depende do storytelling, das histórias que nos contem, do que procurarmos e experienciarmos. Contudo, espaços geográficos como Israel, a Cisjordânia e a Faixa de Gaza; a Ucrânia (mesmo em tempos de uma paz aparente); Belfast e a Irlanda do Norte; Santa Cruz do Deserto, no interior do Ceará (Brasil) ou a Amazónia, trazem-nos experiências performativas. Com estas vivências espaciais, a indiferença, o descomprometimento e a equidistância serão um exercício difícil.
Nestas circunstâncias, a Geografia politiza e arranca-nos dos sofás da quietude superficial e do alheamento relativamente ao que não se pode ou não se quer ver. O cinema, mas também a literatura, a fotografia ou o teatro podem ser importantes para este envolvimento crítico e para esta atenção que escasseia.
Na imagem, fotografia retirada do filme “Fordlandia Malaise” (2019), de Susana de Sousa Dias.