Transposição do mito inesiano: da literatura ao cinema

Glória Marques Ferreira | 23 de Novembro | 16h45 | 1.2 | MESA – HISTÓRIA, LITERATURA E CINEMA

 

“A book is a book, a play is a play, an article is an article,

 a screenplay is a screenplay.

An adaptation is always an original screenplay.

They are different forms.

 Just like apples and oranges”.

Syd Field

 

No seguimento do doutoramento em Literatura Portuguesa (Investigação e Ensino) da FLUC, a oradora propôs, a partir da transposição didática da obra A Trança de Inês, de Rosa Lobato de Faria, a escrita de um argumento para cinema, tendo-se esta concretizado na colaboração com o realizador António Ferreira e a sua mais recente obra fílmica,Pedro e Inês (2018).

A produção fílmica inesiana corrobora o princípio orientador de P. Ricoeur, aquele que reitera que “ler é apropriar-se do sentido do texto”, i.e., o produto final obtido  – a construção de  diferentes guiões cinematográficos a partir de diferente obras literárias (incluindo a de Rosa Lobato de Faria) resultou da interpretação textual que os leitores/argumentistas concretizaram. Reconhecer e estabelecer as relações intersemióticas dos diferentes códigos (literário e fílmico) facilitam a compreensão da problemática da adaptação, de modo a reconhecer, posterior e conscientemente, o grau de fidelidade que se mantém (ou não) em relação à obra literária analisada, consoante a interpretação que os leitores/argumentistas fazem do texto literário, através do estabelecimento de uma relação dialógica entre autor-texto-leitor, como advogam os postulados da Teoria da Recepção.

A transposição do mito literário para a linguagem fílmica é, deste modo, o resultado das interpretações, elaboradas pelos diversos leitores/argumentistas historicamente posicionados, agora num suporte comunicativo diferenciado. Assim, não há uma interpretação, mas interpretações resultantes da experiência da adequação interpretativa do leitor/argumentista.

É à luz dos princípios hermenêuticos que verificámos (algumas) interpretações que, da literatura ao cinema, têm sido realizadas a propósito do mito inesiano, já de si uma interpretação dos factos históricos ocorridos no longínquo século XIV, e de como historiadores, escritores e realizadores de cinema deles se apropriaram. No que diz respeito à produção fílmica, foram realizados, em língua portuguesa, sete filmes e uma série televisiva centrados na relação amorosa de D. Pedro com D. Inês de Castro.

Exceptuando o filme de António Ferreira, nenhum outro filme é assumidamente resultado da adaptação de um texto literário, identificámos as fontes (literárias, históricas e/ou outras) que contaminaram a recriação fílmica do mito no cinema, estabelecendo as relações intersemióticas entre as narrativas literárias inesianas e as projeções que as narrativas fílmicas espelham. Traçados e percorridos os percursos literário e fílmico do mito inesiano e estabelecidas as relações de pragmatismo e intersemiose entre eles, chegamos ao texto de Rosa Lobato de Faria, A Trança de Inês(2001).

Antes da transposição para filme, e necessário desconstruir o texto literário e os seus elementos de escrita e desmontar a sua arquitetura narrativa – tema, assunto, narrador, focalização, ação, personagens, espaço(s) e tempo(s) – para, de seguida, reconstruí-lo como um todo, encontrando o(s) seu(s) significado(s), segundo os horizontes de expetativa criados pelo texto (e sua autora) e o dos leitores, incluindo o argumentista – seguindo a filosofia interdisciplinar do francês Paul Ricoeur –, na produção de um novo texto: o fílmico. A compreensão ontológica da obra procede-se, assim, através do diálogo entre a exegese e a recepção – como sugerem as teorias da estética da recepção ou a nova Hermenêutica. Explorado o texto como texto literário, i.e., desvendamos a “nova leitura” do mito apresentada em A Trança de Inêse como Rosa Lobato de Faria o interpreta e recria, ora aproximando-se, ora afastando-se do que é conhecido da história de D. Pedro e D. Inês.

Chegámos, segundo a estética da recepção, ao significado (meaning) do texto. Na obra de Rosa Lobato de Faria, o tempo possui um papel da maior relevância uma vez que corrompe as fronteiras de tempo cronológico, para passar a ser um tempo emocionaldo protagonista: Pedro, fragmentado pela sua dor e loucura, viaja na ação de A Trança de Inês, entrelaçando três tempos historicamente distantes, como se ela estivesse sempre a acontecer numa linha sincrónica, vertical e simultânea – estrutura completamente respeitada pelo cineasta de Coimbra, António Ferreira.

Pedro debate-se por suprir a interrupção da paixão (implicada pela morte de Inês), corroborando a eternidade de um sentimento que ultrapassa a linha diacrónica, horizontal e sucessiva dos acontecimentos. Esta utilização do tempo renova a noção de intemporalidade (inerente ao estatuto de mito) e é, quanto a nós, uma das maiores virtudes deste romance ainda pouco conhecido, facto que o filme Pedro e Inêscorrige.

A construção de um guião a partir de uma obra literária levanta a questão da adaptação e é necessário reconhecer os mecanismos de transposição de um código para o outro, resultando em diferentes graus de fidelidade ao texto literário, como os apontados pelo investigador Doc Comparato (1992): adaptação livre, literal, baseada em ou a partir de textos literários. A decisão do tipo de adaptação subjacente à escrita do guião fica ao critério do argumentista, uma vez que“ler é apropriar-se do sentido do texto” (Paul Ricoeur). No caso de Pedro e Inês, António Ferreira adaptou, ecleticamente, o texto literário, umas vezes sendo fiel ao meaningdo texto, outras recriando livremente os contextos – nomeadamente o do futuro.

Glória Marques Ferreira

Glória Marques FerreiraProfessora

Natural de Coimbra, é Doutorada em Língua Portuguesa (Investigação e Ensino) pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (Novembro de 2012), com a tese "O Percurso do Mito Inesiano da Literatura ao Cinema: exercício de transposição didática de A Trança de Inês". Na sequência desse trabalho, colabora com o realizador António Ferreira na adaptação para cinema da obra A Trança de Inês, de Rosa Lobato de Faria, a estrear em 2018.