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Crónica do Espectador Fantasma (3)

Porém, esta reformulação foi decorrendo além das fronteiras das metragens, sendo muito mais notória na apresentação das mesmas ao público no conforto das suas casas. Exemplo primário disso mesmo são os actuais aparelhos portáteis de telecomunicação, mas já antes a própria televisão (a primordial “janela para o mundo”) se redefiniu para o formato de 16 por 9, para acomodar os enquadramentos mais cinematográficos. Ora, tal redesenho não se ficou pelo pequeno ecrã (que entretanto procura crescer, numa tentativa de suplantar a tela de cinema) e prende-se com as telecomunicações em geral, ao ponto que muitos hoje em dia vêem séries e filmes via telemóvel ou tablet.

E embora dessas modas possam resultar alguns exercícios criativos interessantes como “The Stunt Double” (curta do realizador Damian Chazelle que procura vender o “cinema vertical” filmado via iPhone como um conceito original, ignorando porventura clássicos do cinema europeu como “A Montanha Sagrada” de Arnold Fanck), infelizmente parece ficar soterrados na sombra de redes sociais, onde todos os usuários procuram ser protagonistas em primeiro lugar. Assim, o défice de atenção perante a arte cinematográfica (ou qualquer outra arte, bem vistas as coisas) parece aumentar a nível alarmante, no meio da cacofonia de jingles e anúncios pop-up ditados por algoritmos e substancialmente semelhantes às revistas cor-de-rosa.

Dadas tais distracções, o Festival Caminhos do Cinema Português, como qualquer outro evento cultural, tem procurado manter uma relação saudável com estes media interactivos. Com efeito, não querendo substituir o seu itinerário tradicionalmente gratificante por uma mera via rápida marcada por luzes e alarmes pulsantes, a evolução do Festival pelos meandros da internet tem sido feito de forma gradual nos últimos anos. Muitas vezes servindo meramente um intento publicitário ou educativo, por via das suas páginas de Facebook ou canal de Youtube, sem nunca menosprezar a exibição tradicional do cinema, numa sala escura e ausente de toques de telemóvel.

Ora, dada a actual situação pandémica, exigia-se um salto de fé preocupante mas necessário. Aliás, muitos dos festivais de cinema do presente ano escolheram precisamente seguir uma exibição totalmente por via de streaming, negligenciando por completo a sala de cinema e tratando-a como uma mera relíquia do passado distante. Já os Caminhos, fiéis aos seus marcos e padrões anteriormente trilhados, recusaram-se a seguir tal via de abandono enquanto resposta a este dilema. Bem pelo contrário, reviveram inclusive espaços de exibição cinematográfica que já se encontravam inertes há mais de uma década. No entanto, era impossível ao Festival ignorar o ciberespaço, até pelo potencial publicitário que tem vindo a cultivar e colher.

Assim, em 2020 ficou em pousio físico somente uma das vertentes interactivas do evento, que é a das entrevistas, simpósios e conferências. Com estes eventos transladados para os acima citados sítios do Festival Caminho (encontrando-se ainda disponíveis para visualização na íntegra), concretiza-se pois uma migração ponderada e acertada do Festival entre os seus campos físico e digital, mantendo aberta a via de comunicação que se estabelece fora dos fotogramas exibidos entre os seu peregrinos anuais, sejam estes cineastas, cinéfilos ou meramente curiosos. E numa edição atípica em que tais caminhantes fazem a viagem enveredando máscaras para protecção da saúde pública, são precisamente estas janelas interactivas que permitem a autores e publico revelarem reciprocamente as suas feições e ideias.

Pedro Nora

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